sexta-feira, 22 de maio de 2009

Crônica: O Espetáculo


Aquele era o grande dia, o dia delas!
De todas aquelas meninas e moças subirem no palco e apresentarem suas coreografias decoradas. Eram roupas de festas, aparatos, leques, castanholas, véus, maquiagens, sapatilhas, oras de ponta, oras sem ponta. O que eu esperava, era que tudo saísse perfeito, se é que perfeição ainda existe em algum lugar.

Havia tantos sonhos por detrás daquilo tudo, o sonho de um dia se tornar uma bailarina de verdade. De se apresentar em um teatro enorme, de ser reconhecida, de pisar em lugares diferentes. E claro, de poder expressar todo o seu sentimento apenas com o corpo, e por que não, também com a alma?

A dança para elas podia ser muita coisa. Ou uma obrigação imposta por alguém, geralmente a mãe, ou uma forma de relaxar, ou até um encontro com as amigas. Para meninas de 10, 11 anos, a dança podia significar infinitas coisas e era naquele dia e naquela hora que elas deveriam mostrar para o Teatro Carlos Gomes inteiro o porquê de estarem ali.

Depois de aulas, treinamentos, erros, tombos, dores musculares, pressão psicológica de professores, várias menininhas deviam levantar a cabeça, entrar no palco e arrasar! Era o grande momento de se apresentarem na frente de pais, familiares, avós, tias, amigas e etc. E claro, qualquer errinho não deveria ser percebido por ninguém.

Eu estava ansioso. Era tanta gente nova trabalhando. A academia era grande o suficiente que eu cheguei a ficar confuso. Tinha a direção artística, a professora de ballet, a professora de sapateado, a professora de preparação física, a professora de jazz, a secretária, a equipe de fotografia e filmagem, os meninos da sonoplastia, os outros meninos da iluminação, a confecção de figurinos e etc. Todos me rodeavam de um lado para o outro exercendo sua função e eu não sabia direito como ajudar.

Além de todos que trabalhavam pela escola de Dança Monica Tenore, ainda tinha a ficha técnica do teatro: um diretor geral, um supervisor, uma oficial administrativa, um técnico de som, os técnicos de luz, a camareira, o cenotécnico, a bilheteria e a portaria. Ufaa! Aquilo tudo a minha volta me dava um pouco de desespero. Mas diante de tantos outros momentos de glória e alegria que passaram sobre meus olhos, eu estava confiante que tudo daria certo.

Eu e as meninas iríamos apresentar o “Ballet O Quebra-Nozes” e o “Musical Grandes Bailes”. No total, eram aproximadamente 100 pessoas que subiriam no palco naquela noite, entre solistas, coreógrafas e bailarinas. Nós iríamos apresentar Dança Árabe, Dança Chinesa, Dança Francesa, Dança Espanhola, Ballet, Jazz e sapateado.

Eram várias turmas que juntas me formavam e me completavam. Havia o grupo das Garçonetes, das Vendedoras de Cigarros, das Damas de Vermelho e das Ladies. Todos eles compostos por dançarinas. O grande fechamento aconteceria com a apresentação de “New York, New York!!!”, clássico de Frank Sinatra, com a participação especial da criadora da escola, a Monica Tenore. Ela que largou São Paulo e venho morar em Vitória em 1980.

No grupo das Vendedoras de Cigarros, um fato “especial” aconteceu. Em uma das salas dos bastidores, as meninas esperavam pela apresentação. Lá em baixo era tanto corre-corre, gente se posicionando pra lá e pra cá. Faltava pouco.

O primeiro toque estava dado. Todas deviam descer para o primeiro andar e ficar em sua posição. Nesse instante, uma das meninas ia ao banheiro retocar a maquiagem e fazer xixi. Ansiedade de principiante. Vontade de fazer xixi o tempo todo. Sabe como é...

Foi só levantar o vestido e abaixar a meia-calça que o problema começou. A unha da dançarina puxou um fio da meia e sem mais nem menos ela rasgou até seu pé. E agora? O que uma menina de 11 anos devia fazer? Não ligar pro que tinha acabado de acontecer e se apresentar com a meia rasgada ou pedir socorro e trocar de meia?

O perfeccionismo da menina falou mais alto. Ela devia estar perfeita. Até porque deveria abrir a apresentação junto com as moças maiores. Dentre as sete “Vendedoras de Cigarro”, apenas ela e mais duas amigas entrariam na abertura com as caixas. Era uma pequena encenação de um bar antigo, em que a melhor parte de todo o elenco de dançarinas iria atuar.

A menina da meia rasgada não podia trocar de função com outra, até porque qualquer uma de suas companheiras não saberia ao certo o que deveria fazer. Ela tinha que arranjar uma solução para aquele problema imediatamente. Foi quando apareceu uma das “Damas de Vermelho” para ajudá-la. Este “anjo” que apareceu para a menina foi procurar uma outra meia-calça preta, com a qual ela pudesse se apresentar.

Lágrimas rolaram pelos olhos da garota. E uma amiguinha gritou: ”Pare de chorar agora, senão além de dançar com a meia rasgada vai sair nas fotos com a maquiagem borrada!”. O desespero da garotinha só aumentava. Eu ficava ainda mais nervoso, porque não sabia como agir. Eu objeto tão abstrato e ao mesmo tempo tão dançante. Não conseguia me mover.

O segundo toque foi dado. Já era para todas as meninas estarem em sua posição dentro do palco. A garotinha da meia rasgada engoliu as lágrimas e desceu correndo. No meio da escada a “Dama de Vermelho” lhe entregou uma nova meia preta para vestir.

Não havia muito tempo. Eu estava prestes a começar e não sabia se a minha amiguinha conseguiria colocar a nova meia em menos de 30 segundos. A pressão diante da menina era enorme. Ela ia abrir a apresentação sentada no chão. Com as mãos apoiadas na sua perna. Ou seja, com meia rasgada ou sem meia o estrago ia ser gigantesco.

Ela correu. Sentou no chão. Tirou a roupa toda. Ficou completamente nua. Ali no meio do palco. Sem pudor, sem medo das luzes ou de olhares que a reprovassem. Em menos de 30 segundos, colocou a meia nova, os sapatos, o vestido, as luvas e pronto. O terceiro toque foi dado. Neste momento, as luzes se acenderam, as cortinas se abriram e eu entrei em cena orgulhoso.

Sabia que para cada uma daquelas meninas o dia era especial e único. Era a apresentação de fim de ano da Escola e além de glamour e coreografias, havia suor, paixão, coragem, medo e dor por detrás de mim. Eu era o fim de todo um treinamento. Era a expectativa que todos aguardavam.

Carreguei nas costas os erros e os acertos. A meia rasgada, um tropeço ali, um deslize aqui, mas deixei muitos sorrisos, abraços e lágrimas de felicidade.

No fim, tudo deu certo. Depois de vários números de dança, as meninas desceram do palco e abraçaram suas mães. O sorriso estampado no rosto delas me deixava imensamente feliz. Eu sabia que era o fim de mais um dia de festa. No próximo ano haveria outro espetáculo da mesma Escola, que eu esperava que fosse ser tão maravilhoso quanto eu fui!

Era só uma menina
E eu pagando pelos erros que eu nem sei se cometi
Era só uma menina
E eu deixando que ela faça o que bem quiser de mim
Se eu queria enlouquecer essa é a minha chance
(Paralamas do Sucesso – Romance Ideal)

Evento: X Festival da Escola de Dança Monica Tenore
Data: 10 e 11 de dezembro de 1998
Local: Teatro Carlos Gomes – Vitória – ES
Horário: 20h30
Menina da meia rasgada: Júlia Lost

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